Os 10 anos da Lei Anticorrupção e a novidade do Termo de Compromisso

Não categorizado 14 de agosto de 2023

No primeiro dia deste mês, durante a conferência internacional organizada pela Controladoria-Geral da União para avaliar avanços e desafios ligados ao combate à corrupção e ao fomento à integridade privada nos 10 anos de vigência da Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), a CGU abriu consulta pública sobre a minuta de portaria que regulamenta a celebração do chamado Termo de Compromisso.

Inserida no debate sobre novos instrumentos de consensualidade entre Estado e entes privados, a proposta substituiria a Portaria 19/2022, que disciplina o julgamento antecipado em processo administrativo de responsabilização (PAR).

O julgamento antecipado é, desde o ano passado, um dos instrumentos inovadores para o ambiente de colaboração e consensualismo. Sua construção se deu diante de desafios práticos identificados em negociações de acordos de leniência e na condução de PARs instaurados no âmbito do Poder Executivo federal.

Percebeu-se que a única solução consensual até então regulamentada – o acordo de leniência – não era suficiente para todos os casos em curso, especialmente diante da existência de situações nas quais a pessoa jurídica gostaria de colaborar com o Poder Público para encerrar o processo sancionatório, mas não possuía elementos probatórios a serem entregues às autoridades, nos termos exigidos na Lei Anticorrupção. Com a constatação dessa lacuna, a CGU editou a referida Portaria 19/2022.

Em seu formato atual, a pessoa jurídica deve comprometer-se a (i) ressarcir o dano causado, (ii) perder a vantagem auferida, (iii) pagar o valor da multa prevista na Lei Anticorrupção, (iv) atender aos pedidos de informações relacionados aos fatos do processo que sejam de seu conhecimento, (v) não interpor recursos administrativos contra o julgamento que defira a proposta, (vi) dispensar a apresentação de defesa e (vii) desistir de ações judiciais relativas ao PAR.

Acatado o pedido pela CGU, a pessoa jurídica se beneficia do abatimento da multa e da possibilidade de ver recomendadas a (i) não aplicação da sanção de publicação extraordinária da condenação, (ii) atenuação das sanções impeditivas de licitar, além da (iii) exclusão da empresa no Cadastro Nacional de Empresas Punidas uma vez cumpridos os compromissos estabelecidos.

A adoção do julgamento antecipado já se revelou acertada e relevante: foram celebrados ao menos 20 julgamentos em aproximadamente um ano de vigência da Portaria 19/2022. No entanto, e a despeito de seus avanços, a prática de suas negociações mostrou haver espaço para melhorias do instrumento. Seu amadurecimento parece passar por questões como (i) a terminologia do instrumento, (ii) sua natureza jurídica, (iii) a forma de avaliação de programas de integridade no contexto de irregularidades pontuais em empresas de pequeno e médio porte e (iv) a possibilidade de a CGU aprimorar seu soft law sobre o instrumento, em especial com a divulgação e sistematização de entendimentos pretéritos da autoridade sobre o assunto.

A abertura de diálogo pela CGU sobre o assunto com a sociedade civil, a academia e os setores público e privado vem, portanto, em ótimo momento. A minuta posta em consulta avança ao dar clareza a regras e procedimentos, contribuindo para a consolidação do instituto. A proposta, por exemplo, (i) incorpora regras sobre a avocação da CGU para os PARs instaurados em outras entidades públicas, em seu art. 5º, § 1º, (ii) disciplina de forma mais compreensível temas como a apresentação do requerimento, a desistência do pedido e as consequências do descumprimento do termo e (iii) utiliza redações mais precisas sobre as atenuantes concedidas com a celebração do termo.

Além disso, é correta a sugestão de substituir a nomenclatura “julgamento antecipado” por “termo de compromisso”, terminologia já presente no art. 49, §1º, inciso III da Lei 14.600/2023 e na Estrutura Regimental da CGU (Decreto 11.330/2023, Anexo I). Isso porque o termo “julgamento antecipado” – e sua consequente natureza jurídica – não traduzem os elementos de colaboração, compromisso e corresponsabilidade inerentes ao instrumento negocial envolvendo o interessado privado. Poderia significar, assim, pela mensagem transmitida, incentivo insuficiente ao agente privado que deseja colaborar consensualmente.

A minuta disponibilizada em consulta pública define acertadamente o Termo de Compromisso como “ato administrativo negocial decorrente do exercício do poder sancionador do Estado, que visa fomentar a cultura de integridade no setor privado” (art. 1º, §1º da minuta). Ao fazê-lo, além de elaborar um conceito para o instrumento, ajusta corretamente sua natureza jurídica, fixando tratar-se de um ato administrativo no qual são celebrados, de forma negocial, compromissos entre a autoridade pública e pessoa jurídica, que passam a ser corresponsáveis pelo seu cumprimento.

Destaca-se também a sugestão de inclusão do art. 26 da LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) entre os fundamentos jurídicos da Portaria, a conferir maior segurança jurídica e clareza sobre a natureza do instrumento. Tal base evidentemente deverá ser aproveitada pelas pessoas jurídicas que já celebraram o julgamento antecipado, até em função da compatibilidade entre os instrumentos sugerida no art. 13 da minuta.

Foram incluídas também disposições que endereçam a cooperação interinstitucional no âmbito de instrumentos negociais. O Capítulo VI da minuta aborda a atuação coordenada da CGU com a Advocacia-Geral da União (AGU), visando dar efetividade e segurança jurídica aos Termos de Compromisso firmados. Também nesse sentido, os §§2º e 3º do art. 9º corretamente preveem que, ao ser dado conhecimento ao Ministério Público e à AGU da celebração do Termo de Compromisso, encaminhar-se-á entendimento pelo não cabimento das sanções do âmbito da responsabilização judicial da Lei Anticorrupção (art. 19 da Lei 12.846, de 2013).

Outra novidade sugerida na minuta diz respeito aos requisitos para a celebração do Termo de Compromisso. De acordo com o art. 2º, inciso III, letra ‘h’, a pessoa jurídica, para celebrar o instrumento, deve se comprometer a implementar ou aperfeiçoar seu programa de integridade. Por sua vez, o parágrafo único do mesmo artigo dispõe que, de acordo com a análise do caso concreto, a CGU poderá condicionar a celebração do termo à inclusão de compromisso na adoção, aplicação ou aperfeiçoamento do programa de integridade.

A novidade é bem-vinda e está em linha com a ideia de que o objetivo primordial da Lei Anticorrupção não é apenas a aplicação de sanções, mas também o fomento a uma cultura corporativa íntegra. Cabe, no entanto, aprimorar a redação da minuta para esclarecer (i) se haverá avaliação prévia dos programas de integridade, e, se sim, como ela ocorrerá, ou (ii) se o mero comprometimento da empresa com o desenvolvimento de um programa de integridade já será suficiente para que o requisito seja considerado atingido.

Devem ser avaliadas, ademais, sugestões de mudanças para harmonizar a redação trazida pelo parágrafo único do art. 2º e o expresso na letra ‘h’ do inciso III, a fim de definir se a implementação ou aperfeiçoamento do programa é um pré-requisito para qualquer negociação, ou se será um compromisso a ser avaliado a cada caso.

Agora, com ainda mais razão, parece ser o momento de mais um passo no desenvolvimento do modelo de avaliação dos programas de integridade utilizado pela CGU. Dentre as mudanças desejáveis, destaca-se a possibilidade de permitir maior flexibilidade ao modelo referencial, concretizado na planilha de avaliação de programas de integridade. As respostas e fórmulas numéricas da planilha podem, por vezes, não dar conta das particularidades de empresas de diferentes portes e setores e das particularidades de casos concretos, em que existem, por exemplo, irregularidades de caráter pontual.

Ainda, é evidente que a iniciativa da CGU de aprimorar o conteúdo veiculado na Portaria 19/2022 deve alinhar-se com a cultura institucional do órgão enquanto difusor de normas e de materiais facilitadores da compreensão do sistema normativo de combate à corrupção. A abertura da consulta pública é momento chave para reforçar o papel da CGU como difusora e harmonizadora de políticas públicas.

Nesses termos, é relevante o aprofundamento do soft law da CGU também sobre o novo Termo de Compromisso, em especial com a divulgação e sistematização de repositório de entendimentos da autoridade a respeito do tema. A CGU já vem publicando materiais orientadores – tal como o Manual de Responsabilização de Entes Privados  e o  Guia do Programa de Leniência Anticorrupção da Controladoria-Geral da União, este último anunciado no evento dos 10 anos da Lei Anticorrupção – mas, é possível pensar em outros, destinados, por exemplo, à dosimetria do cálculo da multa e à forma pela qual a CGU tem entendido seus benefícios.

Além de contribuir para a segurança jurídica na esfera federal, o soft law da CGU é de fundamental relevância para a atividade dos demais entes federativos que estão começando a implementar instrumentos de consensualidade, como é o caso da Prefeitura de São Paulo, que recentemente normatizou o julgamento antecipado no âmbito de sua Controladoria-Geral. A estruturação de redes de apoio e compartilhamento de experiências – como a Rede Nacional de Promoção da Integridade Privada – é iniciativa salutar nessa direção, e o Termo de Compromisso também merece ser discutido e difundido nesse contexto.

Em síntese, é muito positiva a iniciativa da CGU em regulamentar novos instrumentos de consensualidade, no caso, o Termo de Compromisso. A experiência dos autores na celebração do primeiro e também na celebração do maior julgamento antecipado com a CGU até o momento, sob a regra da Portaria 19/2022, permite concluir que o novo instituto do Termo de Compromisso trará avanços significativos face ao atual julgamento antecipado. Garantirá ambiente de maior segurança jurídica, colaboração e responsabilidade no sistema de integridade entre setor público e o setor privado.

A consulta, que fica aberta até o dia 20 de agosto, é uma oportunidade de setores privado e público, academia e sociedade civil dialogarem para a consolidação desse mecanismo de consensualidade inserido no novo paradigma de prevenção, detecção e repressão da corrupção.